No meu quarteirão tinha um morador de rua.
Outro dia, enquanto passeava com meus cachorros pelas ruas perto da minha casa, lembrava de quando me mudei para o Gutierrez. Já se vão quase 16 anos. Na época, eram poucos prédios rodeados por antigas casas habitadas por casais de pessoas mais velhas, sem filhos, porque todos já tinham se casado.
Durante o dia, as ruas ficavam cheias de carros estacionados, devido à proximidade com a Assembleia Legislativa e outros órgãos públicos de grande porte, porém, à noite e nos finais de semana era só tranqüilidade. Chegava a ser ermo, e dava até um certo medo por causa da má iluminação que era coberta pela folhagem das árvores.
É assim até hoje. O que mudou foi que as casas deram lugar aos prédios. Alguns enormes arranha-céus de alto luxo, outros menores, dependendo do tamanho do terreno. Até hoje sofremos com o excesso de obras e com o crescimento do trânsito no local.
Ali ficava um morador de rua. Assim que me mudei uma vizinha contou que antes ele dormia no quarteirão da frente, quando a Construtora Líder começou a construir um prédio ele passou para o nosso quarteirão, e depois de uns anos, quando deu início à obra do nosso prédio, ele se mudou para a esquina, onde se abrigava sob uma marquise.
Moradores do prédio em frente serviam pensão completa: café da manhã, almoço e jantar. Não sei se eram os mesmos moradores, mas ele ganhava cobertor e travesseiro. Acho louvável essa ajuda. Era da paz, passava o dia dormindo, quando chegava o fim do dia começava a beber e de madrugada gritava, um grito desesperador, de uma altura que acordava toda a vizinhança. Passava horas gritando. Ninguém dormia.
Não sabia o que mais nos incomodava, o sofrimento de seus gritos, ou passar as madrugadas acordados e ter que enfrentar o dia de trabalho no dia seguinte. Depois de meses neste esquema, procuramos ajuda. Lembro muito bem, pois eu era a síndica e as medidas foram tomadas por mim. Minha irmã mora no mesmo prédio, é psicanalista e na época trabalhava no Ipsemg. Para ajudar, olhou com o pessoal da Saúde Mental, o que poderia ser feito para ajudá-lo, já que seus gritos eram tão angustiantes, e com isso devolver um sono tranquilo a toda a vizinhança que trabalha no dia seguinte. Não é que nosso amigo era conhecido antigo da turma de lá?
Ele não era mendigo, tinha família, casa, ganhava aposentadoria. Por algum motivo, tinha surtado e saído de casa. Para que eles agissem precisávamos fazer um abaixo assinado explicando sobre o incômodo. Escrevi uma carta relatando toda a situação e pedindo o recolhimento e tratamento do homem e explicando os problemas e até mesmo os riscos que ele corria, já que ficava bêbado e andando de noite na avenida do Contorno, sujeito a ser atropelado e até mesmo morto.
Passei nas casas do entorno e nos prédios também. Qual não foi a minha surpresa quando o síndico do edifício em frente ao nosso envia uma carta-resposta. Ele se negava a passar o abaixo assinado e criticava nossa atitude dizendo que o homem não fazia mal a ninguém.
E foi aí que ele soltou uma pérola: “E nossa rua é muito erma, então é muito bom ter uma pessoa morando ali, que já é nossa conhecida, porque inibe a presença de estranhos e de prováveis bandidos”. Era isso mesmo? Tinha lido direito?
Ele não concordava que chamássemos o tratamento psiquiátrico do estado para curar o indivíduo e devolver sua dignidade, reintegrando-o à sua família. Mas achava digno tratá-lo como um cão de guarda da rua, para inibir que outros mendigos fossem morar ali, e inibir ladrões de agir em nossa rua?
Era por isso que os moradores de seu prédio alimentavam o tal homem. Era o pagamento do cão de guarda, para que ele não os estranhasse?? Nunca me senti tão mal. Meu estômago embrulhou. A raiva que me subiu foi tão grande que a vontade que eu tive foi de bater na casa dele e dizer poucas e boas.
Tive que contar até mil. Esperar a indignação passar. Só então tive condições de escrever uma outra carta apontando cada afirmação absurda e rebatendo. Enviamos a carta sem a participação deste prédio. O morador de rua foi recolhido para tratamento. Ficou uns bons meses sem aparecer. Voltou sem beber. Porém, essa sobriedade não durou muito. Um dia foi atropelado e quebrou a perna. Sumiu mais um tempo e depois ficamos sabendo que faleceu.
Isabela Teixeira da Costa