O mendigo da rua

Foto Gustavo Diaz
Foto Gustavo Diaz

No meu quarteirão tinha um morador de rua.

Outro dia, enquanto passeava com meus cachorros pelas ruas perto da minha casa, lembrava de quando me mudei para o Gutierrez. Já se vão quase 16 anos. Na época, eram poucos prédios rodeados por antigas casas habitadas por casais de pessoas mais velhas, sem filhos, porque todos já tinham se casado.

Durante o dia, as ruas ficavam cheias de carros estacionados, devido à proximidade com a Assembleia Legislativa e outros órgãos públicos de grande porte, porém, à noite e nos finais de semana era só tranqüilidade. Chegava a ser ermo, e dava até um certo medo por causa da má iluminação que era coberta pela folhagem das árvores.

É assim até hoje. O que mudou foi que as casas deram lugar aos prédios. Alguns enormes arranha-céus de alto luxo, outros menores, dependendo do tamanho do terreno. Até hoje sofremos com o excesso de obras e com o crescimento do trânsito no local.

Ali ficava um morador de rua. Assim que me mudei uma vizinha contou que antes ele dormia no quarteirão da frente, quando a Construtora Líder começou a construir um prédio ele passou para o nosso quarteirão, e depois de uns anos, quando deu início à obra do nosso prédio, ele se mudou para a esquina, onde se abrigava sob uma marquise.

Moradores do prédio em frente serviam pensão completa: café da manhã, almoço e jantar. Não sei se eram os mesmos moradores, mas ele ganhava cobertor e travesseiro. Acho louvável essa ajuda. Era da paz, passava o dia dormindo, quando chegava o fim do dia começava a beber e de madrugada gritava, um grito desesperador, de uma altura que acordava toda a vizinhança. Passava horas gritando. Ninguém dormia.

Não sabia o que mais nos incomodava, o sofrimento de seus gritos, ou passar as madrugadas acordados e ter que enfrentar o dia de trabalho no dia seguinte. Depois de meses neste esquema, procuramos ajuda. Lembro muito bem, pois eu era a síndica e as medidas foram tomadas por mim. Minha irmã mora no mesmo prédio, é psicanalista e na época trabalhava no Ipsemg. Para ajudar, olhou com o pessoal da Saúde Mental, o que poderia ser feito para ajudá-lo, já que seus gritos eram tão angustiantes, e com isso devolver um sono tranquilo a toda a vizinhança que trabalha no dia seguinte. Não é que nosso amigo era conhecido antigo da turma de lá?

Ele não era mendigo, tinha família, casa, ganhava aposentadoria. Por algum motivo, tinha surtado e saído de casa. Para que eles agissem precisávamos fazer um abaixo assinado explicando sobre o incômodo. Escrevi uma carta relatando toda a situação e pedindo o recolhimento e tratamento do homem e explicando os problemas e até mesmo os riscos que ele corria, já que ficava bêbado e andando de noite na avenida do Contorno, sujeito a ser atropelado e até mesmo morto.

Passei nas casas do entorno e nos prédios também. Qual não foi a minha surpresa quando o síndico do edifício em frente ao nosso envia uma carta-resposta. Ele se negava a passar o abaixo assinado e criticava nossa atitude dizendo que o homem não fazia mal a ninguém.

E foi aí que ele soltou uma pérola: “E nossa rua é muito erma, então é muito bom ter uma pessoa morando ali, que já é nossa conhecida, porque inibe a presença de estranhos e de prováveis bandidos”. Era isso mesmo? Tinha lido direito?

Ele não concordava que chamássemos o tratamento psiquiátrico do estado para curar o indivíduo e devolver sua dignidade, reintegrando-o à sua família. Mas achava digno tratá-lo como um cão de guarda da rua, para inibir que outros mendigos fossem morar ali, e inibir ladrões de agir em nossa rua?

Era por isso que os moradores de seu prédio alimentavam o tal homem. Era o pagamento do cão de guarda, para que ele não os estranhasse?? Nunca me senti tão mal. Meu estômago embrulhou. A raiva que me subiu foi tão grande que a vontade que eu tive foi de bater na casa dele e dizer poucas e boas.

Tive que contar até mil. Esperar a indignação passar. Só então tive condições de escrever uma outra carta apontando cada afirmação absurda e rebatendo. Enviamos a carta sem a participação deste prédio. O morador de rua foi recolhido para tratamento. Ficou uns bons meses sem aparecer. Voltou sem beber. Porém, essa sobriedade não durou muito. Um dia foi atropelado e quebrou a perna. Sumiu mais um tempo e depois ficamos sabendo que faleceu.

Isabela Teixeira da Costa