A primeira mulher dentro de nós insiste: o mito da mitocôndria

Entramos em março, mês que comemoramos o Dia Internacional da Mulher. A psicanalista e doutora em psicologia pela UFMG, Iza Haddad, enviou para a coluna uma crônica sobre a mulher, bem pertinente para marcar a data, que reproduzimos aqui, na íntegra.

Ilustração Son Salvador

“Ela tinha 9 anos quando a professora lhe iniciou em um saber que se tornaria a alavanca para seu desejo de entender a origem do poder das mulheres sobre a vida. Sem o saber, já se perguntava sobre o que Simone de Beauvoir, a filósofa francesa, afirmou. “A menina torna-se mulher, não nasce mulher!”. Foi em uma aula que ciências que o inesperado calou-lhe a voz! Para a mulher em semente que existia na menina havia alí um atalho que a conduziria à porta magna do enigma da feminilidade. A menininha, fora de si, com os olhos encantados, escutou a explicação sobre uma organela chamada mitocôndria. Foi arrebatada ao campo infantil das ideias mágicas e se viu imediatamente como uma cientista ao microscópio, lá de onde avistaria a alma de cortes histológicos e ‘liquores’ do corpo feminino. Enfim, entenderia, com seus olhinhos clínicos, a mitologia da mulher!
A explicação sobre a origem da mitocôndria lhe encantou. Vagou por algum tempo no recreio, entre as árvores da escola, que ficava no coração da mata da UFMG. Desde muito pequena, sumia pelas estantes de livros da biblioteca para estudar o que não entendia. (Não tinha Google nessa época!). Quando se inquietava com algo, perguntava à mãe, a primeira mulher da vida de uma menina. Se não lhe respondia o suficiente, fazia visitas à biblioteca até sossegar seu anseio de saber. Lamentou-se por não lembrar o nome da professora que lhe iniciara nos desígnios da feminilidade, já que a lenda da organela de respiração celular mais importante do corpo humano a deixaria intrigada pela vida a fora.
Soubera naquele dia que dentro de uma mitocôndria havia apenas material genético feminino. Ou seja, dentro de você leitora, de você leitor e de todos seus antepassados há somente genes mitocondriais femininos. Essa célula carrega informações genéticas das mulheres de sua árvore genealógica, eliminando a linhagem patrilínia. Na fecundação do óvulo pelo espermatozoide, a calda do gameta masculino, rica em mitocôndrias, é perdida e o óvulo fecundado, recebe somente um acervo exclusivo de DNAs femininos. (Valeu, mãe, pelas mitocôndrias, no caso essa herança é só sua). A mitocôndria, cujo termo em grego significa mitos, filamento, e chondrion, pequeno grânulo, converte substâncias como glicose e oxigênio em energia química usada na respiração celular. Considerada usina de energia está presente em grande quantidade no sistema nervoso, no coração e no sistema muscular. Enfim, toda a complexidade dessa organela está organizada sobre uma trama de genes femininos.
Anos mais tarde, já adulta, essa descoberta produziu na menina uma constatação: há em nós o rastro de um elemento feminino, geracional. Se pudéssemos retroceder no tempo, até chegar ao fundo desse segredo, rastreando a transmissão das mitocôndrias pelos séculos, chegaríamos ao seio da hipotética Eva-Mitocondrial, analogia à primeira mulher bíblica, que soube antes de Adão sobre os mistérios da carne. Se dentro de todos nós existe o DNA mitocondrial que herdamos das mulheres, então há um lugar originário para a feminilidade no corpo da humanidade. O mito da mitocôndria reafirma o traço feminino que nos lembra de que fomos paridos por uma fêmea-mulher que carregamos na memória de nossas células. O rastro da feminilidade nessa herança recoloca o enigma sobre a mulher, e nos reconduz, como rebentos, ainda prematuros, à mitocôndria, célula-útero. Não há evolução científica que aplaque, nem fármacos que curem nossos sentidos primitivos de saber que brotamos da carne interiorana das mulheres; recanto escuro, silencioso e solitário de onde um dia viemos, e para onde retornaremos, pelo menos enquanto sonharmos que ainda temos saudade de casa.”

Isabela Teixeira da Costa

Coluna Publicada no Caderno EM Cultura do Estado de Minas

  • Infelizmente a perspectiva da Doutora e muito falha, pois a mitocondria esta presente em todas as especies, nao so a linhagem humana. Logo, se fossemos seguir o raciocinio da Doutora, estariamos assumindo que a origem de todas as especies de animais no mundo vieram de uma mulher.

    Ha especulacoes que a mitocondria foi, um dia, um ser unicelular no passado remoto. Uma vez, ou por meio de uma infeccao ou por meio de ingestao celular, uma celula, por meio de fagocitose incluiu a mitocondria em sua estrutura por causa de efeitos simbioticos.

    Logo, apesar do ‘romantismo’ apresentado pela Doutora, sua narracao parece completamente falha.

    Doutora, se voce estiver interessada em continuar este dialogo, por favor entre em contato comigo pelo endereco de email lukedp@aol.com.

    • Postei seu comentário e encaminharei por e-mail para a dra Iza. Obrigada

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